domingo, 23 de dezembro de 2007

A descoberta de Cartum. Uma viagem a capital do Sudão.

Denílson L. Cruz


Na antiguidade conhecida como Núbia, o Sudão é o maior país da África. Tendo como sua capital Cartum, em árabe (Al-Khartum). Fundada pelos egípcios no século XIX, possui uma população com mais de um milhão de habitantes. Nesta cidade, existe a confluência entre o Nilo azul e o Nilo branco, questão estratégica para o desenvolvimento econômico da região. E é sobre essa cidade pobre e fascinante que se discorre a narrativa de uma viagem rumo ao desconhecido.
Após quase um dia de viagem, partindo de Salvador –Bahia, a chegada a Cartum parecia uma conquista. Regido por um olhar preconceituoso, que logo seria substituído por um olhar analítico.
Estando no centro de Cartum se tem a impressão de estar em uma cidade do interior que está a caminho de se tornar uma metrópole, cercada pelo grande deserto. Mas que, não raro, começa a sofrer problemas comuns a qualquer grande cidade, tais como pequenos furtos, apesar da Sharia “Lei islâmica”.

E segundo os sudaneses, Cartum já foi bem mais tranqüila antes da chegada dos estrangeiros devido a descoberta de petróleo e a migração devido aos conflitos regionais. Pode encontrar policias armados próximo ao mercado livre no centro de Cartum, onde a maioria dos comerciantes é do sul. “Neste local acorre confusão, porém nada que gere caos ou pânico”. Explica Muça Ibi, o guia. Porém é mais comum encontrar a maioria dos policiais desarmados pela cidade.
A vigilância aos sulistas, dar-se devido ao episódio ocorrido em 2005, quando o vice-presidente do Sudão, John Garang, que era do sul, veio a falecer em acidente de helicóptero. Os moradores de Cartum originários do sul atacaram a população árabe e os estrangeiros. Pois atribuíam a morte do vice-presidente ao governo central. Casas comerciais foram queimadas e saqueadas, pessoas agredidas, mortas e até mesmo violentadas. A agressão sulista se fazia a qualquer um que fosse fisicamente diferente deles.
Muça Ibi diz que jamais irá esquecer aquele dia, e o mesmo afirma os brasileiros residentes em Cartum. “Os do sul tentaram invadir a universidade para matar os alunos. Os seguranças atiraram para o alto e alguns alunos pegam pedra e pau para tentar defender a universidade... muitos ficaram machucados”. Afirma Valter Justo, estudante brasileiro residente em Cartum.
Vale ressaltar que o Sudão foi invadido pelos turcos, egípcios e ingleses, esses últimos dividiram o Sudão em dois, Norte e Sul. E os Otomanos anexaram Dafur ao Sudão.
Ao passar pelas ruas de Cartum é comum encontrar os do sul, os árabes e outras etnias, juntos comendo do mesmo prato, tomando chá, jogando futebol e trabalhando, torna-se até difícil de acreditar que ocorrera um episódio tão violento, em tão pouco tempo.
Acredito que se no Brasil ocorresse um episódio como esse levaríamos no mínimo 100 anos para viver em paz. No entanto, a cultura africana e a islâmica Sufi cultivam a cultura do perdão. Eles chamam de Ainibri Aini, onde diz que na Sharia, existe a condição de “olho por olho, dente por dente”, mas se poder perdoar, melhor.
Já no contexto africano, segundo o Muça Ibi é comum o perdão, pois se acredita que a mesma pessoa que está sendo agredida hoje, um dia poderá agredir. Assim sendo, deve-se perdoar, mas isso não implica esquecer.
Existem muitos sudaneses do sul em Cartum, procurando melhorar suas condições de vida, sejam eles mulçumanos ou cristãos. Os sudaneses do sul serão vistos comumente exercendo atividades braçais e de menor remuneração, isso por que os do sul, como são chamados, normalmente não têm o grau de instrução similar aos do estado de Cartum, por terem estado durante muito tempo da sua historia em conflito.
A Sharia, “lei islâmica”, não é totalmente aplicada. Na verdade não há imposição explicita ao povo. O fato mais veemente imposto pelo governo foi contra a circuncisão, que segundo os mulçumanos fere completamente as leis de Deus.
É comum a existência de artigos sobre possíveis massacres de mulçumanos sobre os sudaneses do sul, ou de tribos de Dafur. A verdade é que todas as tribos se encontram em Cartum e cada vez chegando mais.
Um professor sudanês da região de Dafur, formado em Londres, se posiciona política e socialmente sobre o Sudão e em sua fala mostra-se favorável à união sudanesa, contudo não muito favorável a política de governo. Expressa as diversidades étnicas e culturais de seu país, mas descorda dos artigos que apontam para um país em guerra religiosa. Ressalta: “Sou de Dafur e lá somos quase de totalidade mulçumana. No entanto, lutamos contra o governo central de Khartum (Cartum), que também como nós são mulçumanos... Não há guerra religiosa. Existe sim um conflito étnico que independe da religião, mas que causa vítimas e miséria”.
No centro de Cartum, próxima mesquita de Markasi, mesquita do centro, não muito distante há uma igreja cristã ortodoxa. As ordens religiosas têm seu espaço na cidade. O convívio entre mulçumanos e cristãos em Cartum parece ser pacifico e os seus hábitos são comuns, diferindo apenas na hora da oração.
Ainda sobre os conflitos no Sudão, em conversa com um representante europeu da Cruz vermelha Internacional, o mesmo afirma que fora de Cartum não há civilização. Mostrando-se indignado com ações que acorrem na região de Dafur, diz: “... Perdemos três caminhões com suprimentos e o pior, dois motoristas já forma assassinados pelos guerrilheiros... Eles atacam seu próprio povo, pois sabem que com isso, a ajuda da Cruz Vermelha terá de chegar até o povoado atacado e, quando o comboio está a caminho encontram pela frente esses homens, que já está a sua espera... Essa é uma das formas que eles usam para se manterem providos, além de outras na qual prefiro me calar...”.
Há rumores de que existe forte apoio internacional as milícias de Dafur, que por sua vez ao conseguir se separar do governo de Cartum terá em mãos uma região rica em recursos minerais, como o petróleo, causa pela qual temos hoje uma grave crise no Iraque. Mediante tal fato, podemos desconfiar quem são os suposto patrocinadores internacionais.
Apesar das crises no país, Cartum é um retrato a parte. Seus cartões postais, como o rio Nilo. Onde em suas margens pegamos uma barca rumo à ilha de Tuti. E durante a travessia me perdia a observar nas mulheres seus traços culturais, seu desenho nas mãos e nos pés, que logo depois viria, a saber, que tal desenho simboliza que essas mulheres são casadas, por isso pitam essas partes do corpo.
A ilha de Tuti parece um vilarejo, porém não menos fascinante. De Tuti pegamos outra barca e fomos para Bahari, outra cidade do Estado de Cartum. Seria um meio termo, entre Tuti e Cartum. Ainda nas margens do Nilo se ver casais de namorados, namorando de forma tradicional, sem contato físico apenas conversando, como já foi outrora no ocidente.
Andando nas ruas de Cartum, Muça Ibi me mostrava indivíduos pertencentes às diversas tribos. Onde se destacam algumas mulheres brancas, bem vestidas, pertencentes a uma tribo de origem Síria que costumam pedir esmolas nas ruas de Cartum. Sua ação de esmolar pertence a sua cultura, o que lembra os povos errantes do Brasil.
Não existe imposição para que as mulheres usem o hijabu (Véu), o uso se torna uma questão de habito e será comum encontrar mulheres cristãs utilizando-se do mesmo, bem como, algumas sem o véu.
Nos pontos de chá, as vendedoras eram muito simpáticas, porém os homens pareciam desconfiados, havia arábicos e sulistas, e quando paramos para tomar um chá. Após algum tempo, se mostrando bem mais comunicativos, os árabes queriam saber de onde eu vinha. E, como parece ser comum em qualquer país onde os brasileiros visitam, entramos pela máxima do futebol e com muito riso, principalmente quando consegui queimar a boca com chá quente.
É muito comum o sudanês indagar o motivo da sua presença em seu país, contudo após dialogo, tudo fica mais fácil, então se recebe a hospitalidade sudanesa, tão elogiada por aqueles que visitam o país. Contudo, recomendo: quando estiver na companhia de um Sudanês é recomendável que aceite quando o mesmo quiser se responsabilizar pela conta, pois se ofendem quando não aceitam sua gentileza. Creio que muitos brasileiros que conheço gostariam de andar com um sudanês todo final de semana.
O shopping de Cartum é freqüentado por maioria estrangeira, e/ou sudaneses de classe social elevado, tendo em vista que a maioria da população vive na miséria, alguns não têm nem mesmo o que comer. No caminho vejo muita pobreza e desordem, porém eles não comparam nem invejam seu modo de vida com os de outros povos economicamente desenvolvido. Ao meu ver, há ordem na desordem.
Eu e Muça Ibi fomos ao mercado popular, onde existe grande concentração de africanos de diversas partes. É interessante negociar com os árabes, pois fazem de tudo para vender a mercadoria. São muito parecidos com os indivíduos do comercio popular brasileiro “camelôs”.
O acesso a internet não sofre censura. Os clips da tv, já se encontram nos moldes ocidentais, porém muitos expressam de forma bastante criativa a cultura árabe e a importância da sociedade mulçumana.
Em fim, no meio desse mundo oriental, minha visão espiritualista se fundia a uma visão Sufi “Braço esotérico do Islã” e como “Cristão” fui muito bem recebido principalmente pelos jovens da Universidade Internacional da África. Mas apesar de me acostumar com o pôr-do-sol avermelhado do deserto e a acordar ao som do Azan (Chamado para oração), já se fazia hora de voltar. Então, compreendi que há um mundo lá fora para ser descoberto, através da igualdade, sinceridade e fraternidade. Que Allah nos abençoe e sua paz esteja conosco.




Um comentário:

Otávio disse...

é muito bacana a maneira como os textos foram produzidos,pois de maneira simples se faz entender todo o contexto. parabens e obrigado por essas informaçoes que servirao de reflexao e aprendizado no meu dia a dia.